Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

26 de setembro de 2014

Entre Cós e Alpedriz


Agradeço ao José Cipriano Catarino ter-me proporcionado a leitura deste livro, só disponível em ebook na LeYa Online, em edição de autor. Infelizmente, digo eu, porque é um excelente romance, honesto e realista, sobre a vida numa freguesia do concelho de Alcobaça, ao longo do século XX. Criando a personagem da Joaquina, mulher que nasceu no início desse século, morrendo já com 104 anos, José Cipriano Catarino põe-nos em contacto com o Portugal aldeão.

Mas não com um Portugal idealizado, bucólico, onde ainda não chegou a civilização com os seus barulhos e setresses, vivendo em comunhão com a Natureza. Trata-se de um Portugal onde existe «o fedor da "mijaceira" escorrendo dos currais dos porcos, as nuvens de moscas envolvendo animais e pessoas, as melgas, a que chamamos belfos, o cheiro a ranço das candeias, a alimentação pobre e mal confeccionada»; o Portugal onde se lava «a cabeça dos cachopos, catando cuidadosamente lêndeas»; o Portugal onde «para pobre dia de festa é dia de bebedeira de caixão à cova»; o Portugal da «luta pela sobrevivência tão dura que hoje a não conseguimos sequer imaginar»; o Portugal onde «serão precisas gerações para os homens da terra serem vistos em público ao lado das respectivas mulheres»; o Portugal da «solidão desesperadora» de uma mulher, apesar de ter «mudado de uma cidade onde já ninguém a conhecia para uma aldeia onde toda a gente a conhecia bem de mais» e que acaba por se atirar a um poço; o Portugal onde se exercia violência extrema na escola primária; o Portugal de «crianças semi-nuas, vestindo apenas uma camisola interior que já não lhes tapa a barriga inchada de subnutrição, descalças sobre geadas de Fevereiro, arrancando lâminas de gelo da superfície de poças de água, o ranho a escorrer pelas faces»; o Portugal onde morrem jovens por se estamparem contra um pinheiro, perdidos de bêbados, de regresso de uma borga.

Depois de lermos este belo livro, perguntamo-nos porque não foi aproveitado por uma editora conhecida, com bom poder de distribuição e de marketing.

Enfim, também isto é Portugal. Entre Cós e Alpedriz será apenas lido por meia dúzia de felizardos, onde me incluo, compreendendo bem as palavras com que o autor encerra a sua obra:

«A quem interessará ela [esta história], sem um escândalo para o editor, sem uma alegria para os críticos, sem metáforas para o leitor decifrar, sentindo-se, talvez, inteligente por ter encontrado o sentido oculto das coisas, sem ideologias a legitimá-la nem moral a extrair? E, afinal, que importância tem isso? Sobre as casas em ruínas edificarão outras, entre Cós e Alpedriz, onde há muito se não ouve azurrar nenhum candidato a juíz, continuará a viver gente talvez feliz, geração após geração, misturando vidas e histórias que o vento dispersará e reunirá numa só, tal como o coveiro, passados os sete anos regulamentares, amontoa numa só campa os ossos dos esqueletos que outrora se moveram e falaram dando corpo e alma a vidas perdidas no tempo».

Lembro-me de certa vez, sendo eu adolescente, o meu pai ter ajudado a reorganizar o cemitério da sua aldeia transmontana. Abriram-se covas e tiraram-se de lá os esqueletos, algumas caveiras ainda com dentes e cabelo, a fim de arranjar lugar para novas campas. Aquilo impressionou-me, pois sempre ouvira dizer que as campas serviam para eternizar a lembrança dos nossos antepassados, que continuariam a ser lembrados e honrados, eternamente, pelos parentes, a cada visita ao cemitério. Ao fazer tal referência, o meu pai despachou-me: «ora, algumas dessas pessoas já tinham sido enterradas há mais de cem anos». E eu perguntei-me se era essa a ideia que ele tinha de eternidade: cem anos!

Aconselho a todos os leitores deste blogue que tiverem a possibilidade de comprar um ebook (sigam o link) a fazer parte do grupo dos felizardos leitores deste livro!


4 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bem Cristina, solidarizo a (qualquer leitura) desde quê a mesma assimile um projeto em si cuja finalidade seja desenvolver aspectos sociais participativos, pois bem; é-se possível avaliar um povo de (nível) segundo a expressão de arte do mesmo, embora a produção seja excelente quando muitos desempenham a mesma função e acomodan-se com usos e costumes ou seja a própria qualidade do modo de vida afirma-se da tradição seja de modo a expressar, cultivar, alimentar etc., está mesma qualidade quê entende-se da tradição seja a melhor maneira ou modo de fazer, repete-se e expira o círculo vicioso e aparentemente a nosso modo de ver diante desta acomodação no quê seria precioso patamar, impede outros modos de apresentar e estender o conhecimento.

Felizmente ou infelizmente o(s) resultado(s) e novas aspirações são conquistas.

Cristina Torrão disse...

Obrigada pela sua opinião, Cláudia. E por frequentar este blogue :)

JCC disse...

Cristina, muito obrigado. Se não te importas, vou roubar e colar no meu blogue.

Cristina Torrão disse...

Rouba e cola à vontade :)
Hão de surgir mais citações, há partes de que gosto mesmo muito.